SUPERDOTAÇÃO E PSICOTERAPIA: QUANDO O EXCESSO DE CONSCIÊNCIA SE TRANSFORMA EM VULNERABILIDADE
A superdotação, longe de ser apenas uma medida de QI elevado, é uma forma de funcionamento psíquico e neurobiológico marcada por intensidade, profundidade e complexidade. Pessoas superdotadas costumam apresentar uma sensibilidade amplificada, tanto para o conhecimento quanto para o sofrimento. Por isso, compreender e tratar os impactos emocionais e comportamentais da superdotação é um passo essencial para o equilíbrio psicológico e o desenvolvimento pleno de quem vive essa condição.
Embora frequentemente romantizada, a superdotação pode trazer desafios silenciosos. A combinação entre alta capacidade de raciocínio e sobre-excitabilidade emocional — fenômeno descrito por Kazimierz Dabrowski na teoria da desintegração positiva — cria uma experiência de mundo marcada pela intensidade e pela constante tensão entre o ideal e o possível. Não raro, pessoas superdotadas enfrentam solidão existencial, perfeccionismo extremo, autocrítica, crises de sentido e dificuldade de pertencimento, sentimentos muitas vezes incompreendidos pelo entorno.
Segundo o Conselho Brasileiro para Superdotação (ConBraSD), estima-se que cerca de 5% da população apresente indicadores consistentes de superdotação, embora uma parcela mínima desse grupo chegue a ser formalmente identificada. A ausência de identificação adequada leva muitos a confundirem traços da condição com transtornos de ansiedade, TDAH ou desajustes de personalidade. “Quando não há reconhecimento da forma particular como a mente superdotada funciona, o indivíduo passa a se perceber como alguém inadequado, ansioso demais, inquieto demais — ou simplesmente ‘errado’”, explica o psicólogo Weverton Silva, que atua com avaliação e acompanhamento clínico de pessoas superdotadas.
Modelos contemporâneos de compreensão da superdotação, como o de Joseph Renzulli e o de François Gagné, ajudam a iluminar essa complexidade. Renzulli propõe que a superdotação emerge da interação entre habilidade acima da média, criatividade e envolvimento com a tarefa, enquanto Gagné diferencia o potencial inato (dotação) do desempenho desenvolvido (talento), influenciado por fatores intrapessoais e ambientais. Ambos os modelos apontam que o alto potencial, quando não encontra suporte emocional e contexto favorável, pode se converter em sofrimento psíquico e desadaptação.
A psicoterapia especializada tem papel fundamental nesse cenário. Ela não busca “corrigir” a intensidade, mas transformá-la em potência simbólica e emocional. O processo terapêutico oferece um espaço de tradução: um lugar onde o excesso de pensamento, a hipersensibilidade e a autocobrança encontram linguagem, sentido e direção. “O trabalho clínico com a superdotação é, em grande parte, o de sustentar o encontro entre inteligência e vulnerabilidade — permitindo que a pessoa reconheça que pensar e sentir são processos inseparáveis”, observa Weverton.
Do ponto de vista comportamental, muitos superdotados vivem sob uma sensação constante de urgência interna. A rapidez do pensamento e a busca por coerência podem se tornar fontes de exaustão e ansiedade. No plano emocional, há uma oscilação entre períodos de alta produtividade e fases de introspecção profunda, frequentemente confundidas com depressão. A psicoterapia ajuda a modular essa oscilação, oferecendo recursos para que o indivíduo se relacione de forma mais integrada com seus próprios processos mentais.
Em crianças e adolescentes, o acompanhamento é ainda mais determinante. A ausência de reconhecimento ou o excesso de cobrança podem gerar comportamentos de retraimento, agressividade ou desmotivação escolar — sintomas que mascaram o potencial subjacente. Já em adultos, a psicoterapia costuma revelar histórias marcadas por um sentimento de diferença que nunca encontrou nome. A identificação, quando chega, funciona como ato de legitimação subjetiva, permitindo ressignificar experiências e reconstruir a autoestima.
A ciência contemporânea, apoiada por estudos em neuroimagem e psicologia do desenvolvimento, reconhece a superdotação como um padrão de processamento mais eficiente e interconectado, mas também mais vulnerável a sobrecargas emocionais e cognitivas. Por isso, o cuidado psicológico deve ser contínuo, abrangendo autoconhecimento, manejo da intensidade e reconstrução de vínculos sociais.
Mais do que escutar o excesso de saber, o desafio clínico é escutar o sujeito que dele se defende — aquele que aprendeu a pensar como forma de não se perder no sentir. A psicoterapia presencial ou online, nesse sentido, não busca reduzir o excesso, e sim dar-lhe forma, linguagem e repouso.
É nesse espaço de escuta e elaboração que a superdotação deixa de ser apenas uma condição e se torna caminho de desenvolvimento humano.
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